EM NOSSO NOME NÃO

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Dentre os leitores desse texto haverá aquele que o considerará ingênuo. Ele terá razão,  porque o texto quis ser protagonizado pela candura da infância. Dentre eles existirá quem o julgue ridículo e eu não posso negar, porque ele fala de sentimentos e o sentir por vezes é esquisito.  É  possível também que alguém ao lê-lo se emocione. Se isso ocorrer,  este, como eu, crê na humanidade e não se importa de ser visto como desarrazoado.

E foi na condição de crente imprudente que olhei para você e fui atingida profundamente por uma imensa dor. As lágrimas incontroláveis brotavam dos meus olhos, rolavam pelas minhas faces enquanto o coração doído exigia do cérebro uma explicação para aquilo.

O coitado do cérebro foi obrigado a dizer ao músculo inconformado que o corpo pequeno embaixo dos escombros era apenas mais uma cena da guerra que iniciou e permanece minando a nossa humanidade. Apesar disso, o seu rostinho infantil, adornado por lindos olhos, não perdera a pureza própria das crianças. Não havia sinais de revolta, ódio ou desejo de vingança. Eram somente dor e medo.

Doce criatura semienterrada, pertences a um povo que está sendo tratado como animal. Seus patrícios são vítimas de práticas semelhantes às que foram usadas contra os ancestrais do seu algoz. Desatento, aquele povo que foi dizimado pelo ódio, preconceito e a ganância, deixou-se governar por alguém que  reproduz a desumanização a que foram submetidos seus antepassados. Com isso colocam-se em risco dentro e fora da zona de guerra. 

Vocês também têm os seus bárbaros. Nós temos os nossos. Eles estão em toda parte e não é difícil identificá-los.  São amantes das armas e das tradições que escravizam e excluem. Avessos à diversidade, frequentemente expõem seus desejos de exterminar direitos e até  a vida de quem deles divergem. Têm sempre soluções fáceis para difíceis problemas e isso os tornam popularmente aceitos.  Delicada semivivente, é preciso estarmos atentos e fortes como nos alertam os poetas,  para não cairmos nessa armadilha. 

Por sorte, o desespero de ontem como o de hoje que cai sobre o seu povo é sentido pelos que compreendem os motivos que levam às guerras. E embora se deva levar em conta a realidade histórica de cada país, fato é que os conflitos se dão invariavelmente para atender o desejo dos que estão no comando de ampliarem o tempo e os espaços do próprio poder. Não é por você.  Não é por nós. 

Para isso, hoje, arrancou-se-lhe a sua condição humana. Perdeste, portanto,  todos os direitos que protegiam a sua vida. No presente, você não é mais a criança linda; não é  mais a filha, a neta, a irmã; você não é nada. E eu, por ti, também não sou nada. E os que sentem a sua agonia também não podem sentir-se alguém.

Mas a perda da essência  humana não atinge somente a nós.  Aqueles que não se importam com o seu penar e justificam as atrocidades cometidas, abriram mão da sua capacidade de análise  e, hoje, não são mais que caixas de ressonância dos discursos que apenas interessam aos exterminadores da humanidade, porque somente a eles beneficia. Deixar-se enganar por aqueles que amputaram o seu direito de viver em paz é mais uma manifestação da desumanização em curso. 

Lamentavelmente as vozes necessárias de parte do seu povo, de parte do povo de Israel, da Rússia, da Ucrânia, dos países em guerra que gritam,  em seus idiomas, “em nosso nome não!” serão insuficientes para estancar os desejos desmedidos e a fúria dos belicosos.

Infelizmente  a sua dor, menina vilipendiada, somada às de tantas outras crianças não serão capazes de frear a ambição dos que fazem a guerra.

Ainda assim, doce menina soterrada, sem querer adquiriste a autoridade para me governar.  Deixar-me-ei ser dirigida pelo seu medo e pela sua dor. Seu olhar vigiará os meus passos e me incriminará sempre que ao olhar o outro eu deixe de vê-lo como pessoa.

Seus gemidos quase inaudíveis ecoarão sempre que me encontrar diante de ações desumanas, serão as sirenes a me lembrar que os povos não fazem guerras externas. Suas lutas diárias são pela sobrevivência. Seus conflitos são travados pela vida digna que não deixaram você viver.  Suas batalhas se dão, prioritariamente, entre humanos que buscam viver em paz. 

Assim, se diante da desumanização do outro o meu corpo frágil e limitado nada puder fazer, garanto-lhe a transgressão da minh’alma. Essa consciência despertada em mim pelo seu sofrimento, menina linda semienterrada, vilipendiada, desumanizada… não me roubarão: – EM NOSSO NOME NÃO!

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