Brasil tem mais de 30 mil câmeras corporais em uso por policiais

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Uso de câmeras acopladas aos uniformes de policiais militares do estado de São Paulo – Foto: © Rovena Rosa / Agência Brasil

Mais de 30 mil câmeras corporais estão em uso por policiais e guardas municipais de todo o país, segundo levantamento feito pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP). Os equipamentos são usados em fardas dos agentes das forças de segurança para gravar ações e proteger tanto os cidadãos quanto os próprios policiais.

O levantamento é parte de um diagnóstico feito pelo MJSP, em parceria com universidades, para traçar um quadro sobre o cenário atual do uso das câmeras (também conhecidas pelo nome em inglês, bodycams) no país. De acordo com o ministério, até agosto, 26 unidades da federação já estavam usando o equipamento ou se preparando para começar sua utilização.

Três estados estão com o uso mais difundido, segundo o MJSP: São Paulo, Santa Catarina e Rio de Janeiro. Além desses, em outros quatro estados, o processo de implementação já começou: Minas Gerais, Rio Grande do Norte, Roraima e Rondônia. Minas, por exemplo, está em uma fase de projeto-piloto, com o uso experimental de mil câmeras.

Apenas Mato Grosso ainda não planeja adquirir os equipamentos. Prefeituras, como a de Curitiba, já estão usando as câmeras em suas guardas municipais. A capital paranaense tem cerca de 500 equipamentos em uso.

O ministério deve divulgar, em novembro, uma diretriz nacional para o uso dessas câmeras. O documento deve trazer informações sobre processos como tempo de gravação, rotinas, quem pode acessar as imagens e como essas gravações podem ser guardadas e compartilhadas.

As diretrizes não serão obrigatórias para estados e municípios, já que eles continuarão tendo autonomia para criar suas próprias regras para o uso das câmeras, mas servirão como parâmetro para as forças federais e para financiamentos à compra desses equipamentos com recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP).

Além das diretrizes para o uso das câmeras, o MJSP está elaborando uma normal de padronização e certificação para esses equipamentos, com critérios técnicos para auxiliar estados e municípios em seus processos de aquisição das câmeras. Também serão oferecidos treinamentos para a operação dessa tecnologia e avaliações do impacto de sua adoção no país.

Juntas, essas ações fazem parte de um projeto nacional de câmeras corporais do governo federal. “A ideia é melhorar a legitimidade e a confiança das pessoas nas polícias. É fazer com que as polícias sejam vistas de uma outra forma. E isso só será possível por meio da melhoria da qualidade do trabalho”, afirma o coordenador-geral de Governança e Gestão do Sistema Único de Segurança Pública, Márcio Mattos.

SEGURANÇA DE DADOS

Um dos pontos que constarão na diretriz nacional é a segurança da custódia das imagens, a fim de que possa ser garantida sua integridade e posterior uso em processos judiciais.

“Como é que eu compartilho os dados das câmeras corporais com outras instituições como Ministério Público, Poder Judiciário, defensorias garantindo a integridade das evidências? Porque, se eu perco a integridade dessas evidências, seu valor como prova num processo judicial deixa de existir”, afirma Mattos.

Pedro Saliba, coordenador da Data Privacy Brasil, organização que tem pesquisado o uso dos dados das câmeras corporais, afirma que é preciso demonstrar tecnicamente que as imagens originais estão preservadas.

“Você tem que salvar essas imagens de forma que você consiga demonstrar tecnicamente que essas imagens não foram editadas ou adulteradas de alguma forma. Para isso, a gente precisa de requisitos técnicos específicos”, explica.

Saliba destaca o caso recente de um policial que tentou usar as imagens das câmeras corporais para se defender de um processo judicial. As provas, no entanto, não foram aceitas pela Justiça porque havia indícios de que as imagens tinham sido manipuladas.

O coordenador também que é preciso definir critérios como a possibilidade de registrar a localização de onde as imagens foram gravadas e o controle remoto desses vídeos, por meio de sistemas como transmissão ao vivo.

Na Operação Maré, iniciada na última segunda-feira (9) no estado do Rio de Janeiro, por exemplo, vários policiais usavam as câmeras corporais. As imagens eram transmitidas ao vivo para o Centro Integrado de Comando e Controle (CICC), onde eram acompanhadas por outros agentes e autoridades.

“A gente tem que pensar na privacidade dos agentes policiais também. Que parâmetros serão estabelecidos para acionar as imagens remotamente? A gente se questiona também como está sendo feita a proteção desses dados do GPS. Porque potencialmente há um risco. Algum incidente de segurança pode, por exemplo, expor a estratégia de inteligência da Polícia Militar. Ou pode haver alguma perseguição política com relação a um agente policial específico”, explica Saliba.

O Instituto Sou da Paz é outra organização que estuda a implantação de câmeras corporais no país. Recentemente, publicou uma nota técnica sobre o uso desses equipamentos.

Para a diretora executiva do instituto, Carolina Ricardo, é preciso haver um controle sobre quem acessa as imagens. Isso é importante para garantir tanto a privacidade dos policiais quanto a integridade desses vídeos como provas.

“Essa imagem não é pública. Ela é uma imagem que, a princípio, está no banco de dados da Polícia Militar. Existem órgãos que podem acessar, que são órgãos do sistema de Justiça. [E para esses órgãos] vale a mesma coisa em termos de rastreamento. Quem usou, quem acessou, quando”, destaca.

“Você precisa ter a dificuldade de baixar a imagem. Essas imagens não são facilmente baixadas, elas são acessíveis no sistema. Ter um sistema de segurança é muito importante na hora de armazenar. E aí você garante que essas imagens vão ser acessadas por, enfim, órgãos jurisdicionais que têm atribuição legal para isso”, completa Carolina.

DIREITOS DOS CIDADÃOS

Outro ponto que precisa ser discutido, na avaliação dos especialistas, é o uso que será feito dessas imagens, uma vez que são gravadas e armazenadas. Pedro Saliba destaca, por exemplo, que há uma discussão sobre se imagens gravadas em uma situação poderiam ser usadas em processos não relacionados à ocorrência que motivou aquela gravação.

Ele explica que nos Estados Unidos houve o caso de imagens capturadas durante o atendimento a uma ocorrência de violência doméstica que foram usadas posteriormente em um processo de tráfico de drogas contra o irmão da vítima.

Saliba também ressalta que o uso dessas imagens pela imprensa deve ser discutido. “Se a imprensa quiser ter acesso às imagens de câmeras corporais por conta de um fato relevante de interesse público, a gente tem que pensar como essas imagens podem ou não ser disponibilizadas. A gente tem que pensar também que as imagens dessas câmeras corporais não podem servir para a espetacularização da violência. A gente vê muito nas plataformas digitais imagens de violência gerando engajamento e principalmente gerando recursos financeiros.”

Já Carolina Ricardo destaca que é preciso tomar cuidado com tecnologias cujos usos na segurança pública geram debates e polêmicas, como o reconhecimento facial e a criação de bancos de imagens de suspeitos (para reconhecimento por vítimas de crimes).

“A gente precisa ter muito cuidado e é preciso que a gente pare a discussão e nem avance. Acho que a gente não tem maturidade nem para avançar mesmo na tecnologia de câmera para monitorar placas de carro. A gente precisa avançar muito na implantação das câmeras como elas são hoje. Elas ainda estão numa grande fase de testes”, disse a diretora do Sou da Paz.

Paulo Cruz Terra, professor de história da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisa a reação de movimentos sociais a tecnologias de inteligência aplicada à segurança pública, como o reconhecimento facial. Segundo ele, historicamente, governos e sociedades costumam acreditar que a tecnologia pode resolver todos os problemas.

“Existe uma visão da sociedade, de forma geral, que costuma atribuir sentido quase mágico à tecnologia. Ela é apresentada por parte do poder público como capaz de solucionar os problemas”, explica Terra.

No entanto, há sempre uma preocupação com o uso incorreto que pode ser feito com essa tecnologia.

“É importante relacionar à própria história que a polícia tem no nosso país. É interessante perceber como os ativistas relacionam, por exemplo, a tecnologia de reconhecimento facial com o racismo presente na história.”

Mesmo com a necessidade de discutir regras e procedimentos para garantir a segurança de dados e seu uso correto, tanto Saliba quanto Carolina acreditam que as câmeras são importantes para proteger os cidadãos de abusos da polícia quanto para defender o próprio policial de falsas denúncias.

“Nesse momento, o grande prejuízo à população é não ter a câmera. Agora você tem como comprovar fatos que antes você só tinha a palavra da polícia da própria polícia. Você tem uma testemunha eletrônica desses fatos”, afirma Saliba.

Por Vitor Abdala – Repórter da Agência Brasil – Rio de Janeiro

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