Na década de 1980, iniciou-se um processo de reforma voltado para o mercado, primeiro nos países desenvolvidos avançando depois para os países em desenvolvimento.
Esse movimento reformador e propagador das ideias neoliberais colocou na ordem do dia a integração de diferentes países na economia globalizada, e a necessidade de redefinir o papel do Estado.
No Brasil, a reforma se deu na década de 1990 e atendeu a ordem global, ou seja, ela não veio pela imposição de se formular uma política de desenvolvimento nacional, pelo contrário, decorreu das significativas mudanças das relações comerciais no mundo e da organização das forças dos países centrais. E nós silenciamos.
Adotou-se o modelo inglês privatizante e de ajuste fiscal. Vieram as privatizações dos serviços que não exigem o exercício do poder do estado e assumiu-se que o mercado é mais eficiente para atender as necessidades dos indivíduos e melhorar as suas condições sociais. Grande parte de nós aprovou. Grande parte silenciou. Poucos foram os que se insurgiram e por isso foram considerados ‘radicais’.
Na área da saúde, a reforma do estado criou as condições necessárias para o rápido e significativo desenvolvimento do mercado de saúde suplementar. Em 1989 eram 14 milhões de indivíduos vinculados ao sistema, hoje o setor contabiliza 50.494.433 milhões de pessoas vinculadas aos planos privados de assistência médica, com ou sem odontologia.
Esse quadro evidenciou a necessidade da construção de um arcabouço jurídico regulatório para a segmentação privada já efetivamente estabelecida e em expansão. O estado regulador brasileiro, no governo Fernando Henrique Cardoso, adotou, baseado no modelo norte-americano, as agências reguladoras.
Estudiosos do tema advertem que não houve por parte dos vários atores econômicos os cuidados necessários na adoção de tal modelo. Na verdade, estes passaram a acreditar e defender que a modernização do sistema regulatório dependia da implantação dessas novas estruturas.
As agências reguladoras são instituições dotadas de autonomia administrativa e financeira. Cumprem funções típicas dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, sem que seus dirigentes estejam submetidos ao controle social via eleições, numa clara violação do princípio básico da democracia que impõe submissão ao controle eleitoral daqueles com poderes para deliberar sobre as políticas públicas.
O modelo também fere o sistema de freios e contrapesos que impõe funções distintas a cada poder e submissão ao controle dos outros poderes. Ou seja, nenhuma instituição do país acumula o exercício das funções legisladora, executora e julgadora exceto as agências reguladoras que, devido a isso, acumulam enorme poder dentro do segmento regulado.
Diante de tanto poder resta aos consumidores dos serviços privatizados um papel passivo e isso favorece a ação de cooptação dos dirigentes e captura das agências pelos grupos econômicos e pelos grupos políticos organizados na defesa de seus próprios interesses.
Embora o fenômeno da captura não esteja restrito a estas agências, há particularidades destas instituições que facilitam o seu aprisionamento tanto pelas empresas que compõem o segmento do mercado regulado, quanto pelos políticos.
Entre as características que facilitam a captura destas agências está a necessidade de mão de obra qualificada proveniente da iniciativa privada. Algum diretor prejudicaria uma empresa na qual trabalhou e que pode lhe empregar quando acabar seu mandato na agência? Por outro lado, aqueles indicados pelos políticos têm comportamento semelhante aos detentores de cargo comissionado: sempre que são demandados agem como assessores destes políticos.
A constatação de que os diretores das agências não estão imunes às orientações oriundas de poderosos grupos econômicos e de políticos é inevitável. Dessa forma, não se sustenta o argumento da neutralidade presente nos discursos legitimadores da criação dessas estruturas. O mercado regulatório é um selvagem campo de lutas de interesses. E vencem aqueles capazes de influenciar os elaboradores e executores das políticas regulatórias.
No mercado de plano de saúde, as relações comerciais que se estabelecem dificultam ainda mais a ação dos consumidores porque apresentam propriedades econômicas específicas que ora inviabilizam a concorrência perfeita, como a concentração dos beneficiários do sistema nas grandes operadoras; ora contribuem para os crescentes custos do setor, como a inelasticidade da demanda ao preço.
A inelasticidade da demanda ao preço está ligada a necessidade das famílias de, independentemente do valor cobrado, manter os serviços de saúde disponíveis.
Sem competição e sem regulação adequada, o setor fica livre para praticar preços de monopólio, com aumentos sempre muito acima da inflação do período, como são os 9,63% autorizados pela ANS este ano para planos individuais. O percentual é mais que o dobro do IPCA acumulado nos últimos doze meses, 3,94%.
As empresas desse segmento de mercado também se sentem liberadas para descredenciar profissionais da saúde, clínicas e hospitais, dirigindo seus clientes para atendimento na sua rede própria onde, invariavelmente, os serviços são de menor qualidade. Além disso é comum negarem exames e cirurgias de médio e alto custo. Esse é o preço do nosso silêncio.
A nossa trajetória silenciosa lembrou-me o trecho do poema ‘No caminho com Maiakovski’ que diz: na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem, pisam nossas flores, matam nosso cão e não dizemos nada. Até que um dia o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz e conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada.
Ainda não é o nosso caso. Ainda temos voz. Todavia, tem nos faltado consciência e coragem para usa-la em prol dos serviços públicos, especialmente em defesa do SUS.