Brasileira bomba com bistrô de pratos sustentáveis em Lisboa

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Lisboa — Aos 42 ano, a recifense Marcela Caetano, criada em Brasília, diz que nunca pensou em comandar um restaurante. Seu sonho sempre foi o de viver da agricultura sustentável, pois tem paixão pela alimentação que preserve o planeta. No ano passado, porém, uma oportunidade lhe caiu no colo: administrar um espaço gastronômico em um hotel butique instalada no charmoso bairro de Alfama, no coração da capital portuguesa. Num primeiro momento, o objetivo do dono do estabelecimento era investir no negócio. Mas ele acabou desistindo. Ofereceu, então, a Marcela a chance de ela tocar, a sua maneira, um local em que as pessoas pudessem saborear um bom prato. Pensou, pensou, e acabou aceitando. Nascia ali o Folha Bistrô, com uma pegada voltada para o meio ambiente e o social.

Foram exatos três meses de obras para que o restaurante abrisse as portas em outubro de 2022. Nada, porém, foi feito de forma apressada, afinal, era preciso tatear que caminho seguir, sem contratempos. “Primeiro, optamos por só oferecer café da manhã aos hóspedes do hotel. O passo seguinte foi abrir alguns dias para o almoço. Agora, funcionamos até para o jantar”, conta Marcela. Ela diz que o nome escolhido para o estabelecimento não é por acaso. A base de todos os pratos é de plantas. “Mas nada da tradicional alface, que consome milhares de litros de água e não tem gosto. O nosso cardápio contém folhas com sabores mais fortes, que não são oferecidas, normalmente, ao grande público”, ressalta. Um exemplo é a salicórnia, ou peixinho, que cresce espontaneamente em ambientes salinos e é saborosa e nutritiva.

Mas não é só. A empreendedora, que é formada em design gráfico, dá alto valor à agricultura regenerativa, ou sintrópica, que vai muito além do orgânico. Os alimentos são produzidos em áreas regeneradas, que haviam sido degradadas pelo desmatamento desenfreado e pela pecuária. O solo é recuperado a partir da cultura de plantas selecionadas com rigor e cuidado, sempre de forma diversificada. Os produtores dessas áreas unem a preservação ambiental e o comércio dos produtos. “É uma visão muito diferente da agricultura tradicional, que abusa do solo apenas com viés comercial”, ressalta. “A preocupação com a sustentabilidade é vital. Eu não sei trabalhar sem plantas, mas sempre respeitando o meio ambiente”, acrescenta.

Mulheres à frente

Marcela em seu restaurante Folha Bistrô, em Lisboa
Marcela em seu restaurante Folha Bistrô, em Lisboa(foto: Arquivo pessoal)

Outro ponto importante para Marcela é a questão social. A prioridade para os fornecedores vai para as mulheres, que, além das verduras, produzem queijos, licores e até cervejas. Ela conta que conheceu todos os parceiros e parceiras nos mercados que costumava frequentar quando fabricava produtos à base de ervas. A profissão de herbalista ela aprendeu nos Estados Unidos, onde morou, em 2017, e estudou as plantas medicinais. Esse lado continua latente, tanto que ela oferece os medicamentos naturais no restaurante. “Foi um aprendizado enorme ver como as plantas têm poder de cura”, frisa.

Nos Estados Unidos, ela também trabalhou em cooperativas alimentares, responsáveis pela produção de frutas, legumes e verduras. “Foi ali que tive a dimensão da diversidade da produção. Descobri, por exemplo, que há 16 tipos de maçãs. Mas todas as pesquisas mostram que a indústria da alimentação restringe demais a oferta, olham apenas para seus interesses”, assinala a empreendedora, que se diz totalmente contrária aos produtos da moda. “As pessoas não têm noção de como a comida da moda é nociva. Quando um produto entra no circuito, há um esgotamento da produção e os preços disparam.

Nos EUA, onde foi gerente de uma cooperativa de alimentos
Marcela Caetano (lenço na cabeça) como voluntária no Sítio Semente, em Brasília, pioneiro da agricultura sintrópica(foto: Arquivo pessoal)

Vejam o caso da quinoa, que provocou grandes desequilíbrios nas regiões de plantio. Os habitantes dessas localidades ficaram sem ter o produto para comer, tiveram de recorrer a grãos com menos nutrientes”, explica.

A pegada social do Folha Bistrô incluiu até as louças usadas pelos clientes. Todas as peças foram adquiridas junto a um projeto de ressocialização de ex-presos. Já os tapetes espalhados pelo restaurante têm origem no hub criativo “A avó veio trabalhar”, integrado por mulheres com mais de 65 anos. O toque feminino também está na cozinha. São quatro profissionais que se revezam na produção das delícias servidas à clientela. “Tive a preocupação de transformar a nossa cozinha em um lugar saudável para trabalhar. Isso, inclusive, se reflete no nosso cardápio, que é sazonal, muda de acordo com as estações e foi pensado no sentido de preservar a qualidade de vida. Já trabalhei em cozinhas de restaurantes e sei o quanto esses ambientes são insalubres, quentes demais, e ainda pagam mal”, relata a recifense.

Carnes e peixes

A empresária, em uma feira de Lisboa durante a pandemia
A empresária, em uma feira de Lisboa durante a pandemia(foto: Arquivo pessoal)

O público majoritário do restaurante de Marcela é de estrangeiros — norte-americanos, francês e israelenses, principalmente. São pessoas, em geral, com mais de 40 anos, com fortes preocupações ambientais. A empreendedora enfatiza, contudo, que os pratos servidos também têm opções de carnes e peixes, como as sardinhas. Mas não são preponderantes. “O que eu me recuso é oferecer bacalhau e carne de porco, que estão no cardápio tradicional português. Para quem deseja comer isso, há oferta por todos os lados”, afirma. “Eu, particularmente, não sou vegana. Às vezes, sinto vontade de comer um bom hambúrguer, e não me furto disso”, emenda.

Marcela diz que o reconhecimento do público ao que serve nas mesas é comovente. “Os clientes dizem que tudo tem um estilo delicado, mesclando o físico e a alma”, conta. Ela ressalta que sua meta é consolidar o restaurante, mas nada impede que realize o sonho de morar no campo e viver da agricultura sustentável e da produção de plantas medicinais. “Certamente, isso não acontecerá em Portugal, onde os pequenos produtores de alimentos não são valorizados”, destaca. “Estamos falando de um projeto de mais longo prazo. Por enquanto, vou tocar esse restaurante que o acaso me entregou”, complementa.

Marcela Caetano (lenço na cabeça) como voluntária no Sítio Semente, em Brasília, pioneiro da agricultura sintrópica
Marcela Caetano (lenço na cabeça) como voluntária no Sítio Semente, em Brasília, pioneiro da agricultura sintrópica(foto: Fotos: Arquivo pessoal)

Ela não esconde, porém, a preocupação com o desconhecimento da maioria da população em relação às questões climáticas. “Vejo as pessoas muito tranquilas ante o que está acontecendo. As mudanças climáticas têm provocado eventos cada vez mais extremos, com consequências graves”, alerta. “Por isso, estou tão pessimista com o futuro do meio ambiente. Ou mudamos a nossa forma de viver, ou vamos pagar caro”, ressalta a dona do Folha Bistrô, que se diz totalmente contra o desperdício. “No nosso restaurante, tudo é aproveitável. Se há sobras, doamos para pessoas carentes”, frisa.

A empreendedora está fora do Brasil há 23 anos. Além de Portugal e Estados Unidos, morou na Austrália e na Espanha, onde cursou gastronomia. “Mas não concluí os estudos”, comenta. Não há planos, por enquanto, de retornar ao país de nascimento. A mãe e o marido estão em Lisboa. O pai vive em Brasília. “Vamos ver o que a vida nos reserva”, afirma, ciente de que empreender no exterior requer muita coragem e disposição. “Em Portugal, me sinto mais estrangeira do que em todos os lugares que morei. Apesar da proximidade da língua, a cultura é bem diferente da nossa”, admite

Por Vicente Nunes — Correspondente

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