Este texto deveria homenagear os 80 anos do Chico Buarque, mas os abismos sugaram de tal forma minha atenção que no lugar de cantar Eu te amo e me inspirar na sua competência para falar de amor – se entornaste a nossa sorte pelo chão, se na bagunça do teu coração meu sangue errou de veia e se perdeu – só consegui cantarolar Cálice – atordoado eu permaneço atento na arquibancada para qualquer momento ver emergir o(s) monstro(s) da lagoa.
Procurei explicações para a causa de tamanha apreensão e me deparei com uma entrevista do jornal Folha de São Paulo, de 1999, com o escritor português José Saramago autor de, entre outros livros, ‘Ensaio sobre a cegueira’ protagonizado pela angústia humana coletiva. Saramago explicava o protagonismo desse sentimento em seu livro ao tempo que me mostrava a causa da minha própria aflição – os humanos inventaram a crueldade, que no fundo é a tentação do domínio sobre o outro.
Creio não existir argumentos contrários a tal pensamento, querido Chico. Não há como, em defesa dos homens, acusar outra espécie animal de ser responsável pela fome, pela tortura (física e psicológica), pelas doenças, pelas mortes violentas, pelos vícios, pelas dores do mundo. E o mais triste é que como Saramago afirmou poderíamos usar a razão para não nos permitirmos ser cruel, para escrever coisas lindas como fazes, mas consumamos o contrário.
Foi esse desejo de dominar o outro, meu amado poeta, que Hobbes racionalmente usou para propor a criação de um ente – o Estado – maior que todos nós e com o poder do uso legítimo da força sobre quase todos os corpos. E eu digo quase todos porque a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu recentemente que os seus presidentes têm imunidade absoluta e podem cometer todos os crimes enquanto estiverem no cargo. E quando isso ocorre é preciso grande esforço coletivo para que a maldade extrema não seja normalizada. Você, Chico, sabe melhor do que eu o quão isso é verdadeiro.
O Brasil voltou, em 2019, a ser governado pela ira, a crueldade e a sede de poder da extrema-direita e ainda delas não se livrou. Sem esquecer o número de mortes evitáveis na pandemia da Covid; o ataque às terras indígenas, o aumento da fome; o incentivo aos crimes ambientais; a tentativa de golpe de Estado entre outras ações do governo Bolsonaro, usarei o PL dos estupradores, que prevê prisão de 20 anos para mulheres estupradas que optem pelo aborto, barrado pelas manifestações populares, como exemplo gritante da permanência da crueldade nas instituições brasileiras.
Derrotado nas ruas, mas incentivado por Michele Bolsonaro, o autor do PL dos estupradores anunciou mudanças nesse projeto. Agora no lugar de condenar as mulheres ele quer impor pena aos profissionais da saúde que fizerem o atendimento. Dessa forma, as mulheres estupradas que desejarem fazer o aborto previsto em lei terão de fazê-lo sem assistência médica. Assim, não serão mais condenadas à prisão, estão condenadas à morte. É o desejo da crueldade humana institucionalizada de dominar os corpos femininos. E você, Chico, com a sua enorme capacidade de captar os sentimentos do seu tempo, caminha na direção oposta quando deixa de cantar canções suas que poderiam dar margem a justificativas abomináveis. Assim como não esquece de nos lembrar que apesar deles amanhã será um novo dia! E diante de tanta grandeza, como não lhe pedir desculpas por não escrever algo à sua altura? Como não te amar? Como não me alegrar com a sua existência? Como não pedir a Deus que ela se estenda por tempos sem fim?
POR LÚCIA BARBOSA