Advogado Pedro Gomes comenta que não há crime de racismo no caso envolvendo um italiano em Coruripe – Foto: Divulgação
Tem ganhado repercussão em todo o país a denúncia ofertada à Justiça de Alagoas pelo Ministério Público do Estado (MPE), que tem como alvo um homem negro pela suposta prática de racismo contra um cidadão italiano. Segundo o Ministério Público, em uma conversa por mensagens de celular, o denunciado afirmou que o homem que se apresenta como vítima de racismo tinha “cabeça europeia branca escravagista”.
A promotora Hylza de Castro afirma que houve prática do crime de injúria racial na situação. Em janeiro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 14.532/2023, que equipara a injúria racial ao racismo.
A Tribuna Independente procurou especialistas no assunto para opinar sobre o caso, repudiado pela maioria.
“As ações discriminatórias que são abarcadas na lei são contra pessoas ou contra um grupo de pessoas que, posta a condição de proveniência geográfica, de etnia, de cor ou de religião, sofrem algum tipo de tratamento discriminatório que outras pessoas não sofrem por razão de sua cor”, explicou Pedro Gomes, secretário-adjunto da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/AL) e advogado do Núcleo de Advocacia Racial do Instituto do Negro de Alagoas (INEG).
O advogado explica que, no caso dos italianos ou de outros povos e etnias que não têm histórico de discriminação, não há, na avaliação de Gomes, como existir o crime de racismo. “Ela [a Lei 14.532] delimita muito bem claro que não tem, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, não tem como existir racismo reverso”, reforça.
Pedro Gomes destaca que o Instituto do Negro recebeu com “perplexidade” a denúncia e vai trabalhar pelo arquivamento da ação. “Não é possível ver uma lei que é tão importante para o povo negro e tão importante para o povo brasileiro, mesmo como um todo, ser deturpada a ponto de você punir, você tentar agora punir as vítimas e proteger os agressores. Abre-se um precedente muito perigoso para o sistema judiciário e para o próprio combate ao racismo como um todo dentro do Brasil”, reclama o advogado.
Para o advogado, caso a situação se concretize, é um risco muito grande para a democracia brasileira, principalmente em relação às questões raciais.
Pedro Gomes destaca ainda que o Ministério Público de Alagoas é um parceiro do Instituto do Negro de Alagoas em diversas lutas, “mas fica uma preocupação muito grande sobre qual o nível de letramento racial, de treinamento que os membros do Ministério Público estão tendo, não só em Alagoas como no Brasil inteiro”.
Arísia Barros diz que racismo é ‘algo naturalizado em Alagoas’
Para Arísia Barros, coordenadora do Instituto Raízes de Áfricas, o racismo é um ideário social de que existe uma raça superior à outra.
“E quando a gente pensa nessa perspectiva é a dita raça branca que se faz superior a todas as outras. É inconcebível que haja essa leitura de que um homem negro possa ofender racialmente um homem branco. Ora, porque se existe essa superioridade, como é que essa equação se resolve? Não se resolve”, observou.
Arísia, militante pela igualdade racial, aponta o Judiciário brasileiro como uma grande representação da hierarquia social no país, que é branca, trazendo todos os conceitos dessa suposta superioridade de raças. Para a coordenadora, a denúncia é resultante de conceitos estabilizados, internalizados e naturalizados, “pois o racismo é algo naturalizado em Alagoas”.
“Além da indignação, causa assombro o silenciamento em relação ao processo em Alagoas”, analisou.
Arísia aponta, ainda, que há aliados da luta antirracista em vários espaços em Alagoas, inclusive no Judiciário. “Ainda são poucos, mas é um começo. Eles são poucos e ainda não têm o poder de movimentar a máquina para discutir mais abertamente esses processos das práticas racistas. Falta entendimento, nós ainda não alcançamos o que está dito na lei. A Justiça não alcança o que está dito na lei”, continuou.
Ela reforça que, quando se fala em injúria racial, se fala dos grupos minoritários, que não têm o poder de voz, não têm o poder de mando: “Isso não acontece com a raça branca porque é ela que norteia os espaços do poder desse país. Portanto, discutir racismo a partir do olhar eurocêntrico é extremamente complicado, inviável e complexo”, ressalta.
Para Arísia Barros, a repercussão do caso pode servir como experiência pedagógica, traçar alguns caminhos, reeducar olhares, reeducar espaços, fazer análises sociais de como a questão do racismo estrutural está sendo trabalhada e a partir daí, que o letramento racial deixe de ser apenas uma simbologia acadêmica e se espalhe nos vários espaços para que aprendamos a aprender. “Isso é um grande tropeço jurídico e é importante se fazer releituras”, opinou.
Advogado ressalta que ação do MPE é considerada equivocada
O advogado e professor de Direito da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) Welton Roberto diz que há um equívoco no pensamento do Ministério Público. “Porque ele parte da ideia que a injúria racial pode ser cometida contra qualquer pessoa, principalmente no tocante à questão que envolve o racismo reverso, que não existe como conduta criminosa”, explica.
“Deveria ter sido contemplado pelo Ministério Público a harmonia entre o artigo 20-C da Lei de Racismo que fala exatamente da questão que envolve as minorias e, claramente, um homem branco, europeu, nunca foi minoria e não pode ser vítima de crime de injuria racial, por se configurar na esdrúxula figura do racismo reverso”, reforçou o advogado.
Welton Roberto ressalta ainda que, na sua concepção, o fato de ser italiano, automaticamente não é uma ofensa como no caso de uma pessoa preta que é ofendida pela cor da pele, porque se sabe que o racismo sempre existiu para essas pessoas.
“A injúria racial não pode ser representada dessa maneira. Estão invertendo quando chamamos de racismo reverso. Então, o que poderia ter acontecido é, se o italiano se sentir ofendido, ele entrar com uma injúria não racial, uma injúria normal, e aí não seria a figura do Ministério Público a pessoa legitimada a entrar com ação, e sim, somente o italiano que teria que entrar com ação penal privada. É assim que penso, e assim que todos os alternadores que envolvem a questão do racismo, principalmente no tocante a inexistência de conduta típica do racismo reverso, têm escrito”, concluiu.
O QUE DIZ O MP
Em nota divulgada na semana passada, o Ministério Público do Estado de Alagoas informou que, a respeito do caso ocorrido em Coruripe, em 2023, se trata de crime de injúria racial, que é configurado quando alguém tem o objetivo de ofender outra pessoa em razão de raça, cor, etnia, religião ou origem. Por fim, o MPAL explicou que, dentro da instrução processual, ambas as partes envolvidas na ação penal terão a oportunidade de apresentar seus argumentos e defesas, conforme estabelece o Código de Processo Penal. (T.M.)
Por Thayanne Magalhães – repórter / Tribuna Independente