Os Mercenários volta da aposentadoria com cansaço e dores nas costas – Foto: Divulgação
O contexto em que Os Mercenários 4 foi realizado parece uma tempestade perfeita de maus agouros. Nesses quase dez anos que se passaram desde o terceiro longa, de 2014, os filmes de porradaria migraram do pastiche de Sylvester Stallone e Cia. para a sofisticação de John Wick; a pandemia inviabilizou produções custosas com elenco numeroso de astros, desde sempre o chamariz da franquia; e na era do streaming, quando o cinema de blockbusters parece reservado apenas aos filmes-eventos, fica deslocado ver na telona um filme de ação barato com vocação para sessão direto-em-dvd.
O movimento que este quarto filme faz é o da involução, portanto, a começar pela decisão de subir o volume da sangueira e recuperar a classificação etária mais alta, como nos dois primeiros longas. (A análise dos envolvidos é de que o fracasso de Mercenários 3 se devia à decisão de baixar a censura para a faixa mais acessível dos 13 anos nos EUA.) Há muitas cabeças explodindo em Os Mercenários 4, portanto, além de um ou outro corpo carbonizado. Não é nada que não se veja em The Boys semanalmente, mas de qualquer forma o quarto filme trata a violência gráfica como sua bala de prata.
Parece ser tudo o que sobrou a uma franquia que começou como autoparódia, encontrou brevemente um nicho dos filmes marrentos para prosperar, e que agora tenta sacar no caixa o que lhe resta de saldo. Stallone mal aparece na continuação, em que Jason Statham, na condição de coprodutor, é promovido a protagonista, numa missão de impedir que um artefato nuclear cause “um incidente internacional”.
O fato de o roteiro ser absolutamente genérico nessa premissa e literal na forma como apresenta situações e novos personagens é um atestado do espírito barato que sempre balizou o cinema brucutu. Há um frescor nisso, especialmente numa época em que o cinema de ação americano julga necessário inchar suas narrativas com construções de mitologia cheias de conexões e explicações desnecessárias. O diretor Scott Waugh encena as apresentações com absoluto desinteresse – “a missão é essa aqui, a equipe agora é essa aqui, o vilão é esse aqui” – e o espectador tenderá a aproveitar melhor o filme se encarar tudo isso como uma expressão de algum desprendimento budista.
Na verdade, esse desapego (uma forma bonita de interpretar o que no fundo talvez seja só precariedade) é o que dá a graça a Os Mercenários 4. O filme começa bem solto, descompromissado com os códigos do “bom cinema”, como a decisão de fazer dois eventos de tempo distinto (um transcorre no máximo em poucas horas e outro parece se estender por alguns dias) andarem em paralelo na primeira missão. É um desafio às leis da física que deixaria Christopher Nolan desconcertado. Os Mercenários 4 se desenrola aceitando – sem cair na paródia de si novamente – que essa certa respeitabilidade já não lhe cabe, e tudo bem.
Nesse sentido, o aspecto absolutamente artificial dos cenários digitais acrescenta uma camada a mais ao desconcerto. Como a produção ocorreu durante o isolamento da pandemia, muitos cenários são ora físicos, ora criados no chroma-key; isso gera um efeito de dissociação que obviamente pode alienar o público mas que pode também dar alguma imprevisibilidade a esse filme no mais altamente previsível. Imprevisibilidade no sentido de que não há muito compromisso com a fisicalidade do que estamos assistindo, e por isso, quem sabe, Os Mercenários 4, com seus fundos falsos, uma hora vai se converter numa espécie de O Último Programa do Mundo da MTV.
As promessas de anarquia não se cumprem, porém, e resta ao filme decepcionar tanto esses sonhos de desvario quanto negligenciar a entrega mais básica. A ausência de Stallone é sentida no filme, que também não consegue transformar as participações de Tony Jaa e Iko Uwais em um acontecimento digno de nota (o diretor Waugh saca algumas boas ideias de transição de cena mas no geral a coreografia de luta não é seu forte). Tanto Jaa quanto Uwais prosperaram nos anos 2010, em que Os Mercenários esteve praticamente aposentado como franquia. Cabia ao quarto filme reivindicar um lugar pra si nesse novo cenário do cinema de ação, mas talvez a essa altura do campeonato fosse pedir demais.
Por Marcelo Hessel com Omelete